segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O visionário

Hoje me peguei pensando: "Se eu tivesse que escolher um arquiteto, um dos gênios, um dos maiores, aquele com o qual você se identifica absolutamente, qual eu escolheria?"
O Flávio de Carvalho. Sim. Não é o Paulo Mendes da Rocha, nem o Lelé, apesar de eu ser fã incondicional dos dois.

Flávio com berrante, anos 60

Flávio de Rezende Carvalho foi um visionário. Nascido em 10 de agosto de 1899 em Barra Mansa, RJ, foi um dos maiores nomes do modernismo brasileiro. Era arquiteto, engenheiro, cenógrafo, pintor, teatrólogo, performista, escritor e filósofo. Engenheiro de formação, mas arquiteto genial.

O arquiteto

Uma de suas obras mais famosas são as casas da vila modernista na Al. Lorena em São Paulo. Infelizmente só restou uma mais ou menos inteira (acho que é uma... ou duas talvez...).





O performático

A experiência nº 02

07 de junho de 1931.

Manchete do jornal O Estado de São Paulo do dia seguinte:

NA PROCISSÃO, UMA EXPERIÊNCIA SOBRE A PSICOLOGIA DAS MULTIDÕES DA QUAL RESULTOU SÉRIO DISTÚRBIO

Domingo, às 15 horas, quando desfilava pelas ruas do centro da cidade a procissão de Corpus Christi, um rapaz muito bem posto, que se achava na esquina da rua Direita e Praça do Patriarca, não se descobriu, conservando ostensivamente seu chapéu na cabeça.
Os crentes, que acompanhavam o cortejo, revoltaram-se com esta atitude e exigiram em altos brados que ele se descobrisse. Ele, no entanto, sorrindo para a turba, não tirou o chapéu, embora o clamor da multidão já se tivesse transformado em franca ameaça. Foi então que inúmeros populares tentaram linchá-lo, investindo contra ele. O rapaz pôs-se em fuga, ocultando-se na Leiteria Campo Bello, situada à rua São Bento, até onde foi perseguido pelos mais exaltados.
O sub-delegado de plantão na Polícia Central compareceu ao local, onde deu garantias ao moço, protegendo-o contra a ira do povo.
Na Polícia Central para onde foi conduzido, declarou a vítima da exaltação popular o engenheiro Flávio de Carvalho, de 31 anos de idade, residente à Praça Oswaldo Cruz.
Nas suas declarações, disse que há tempos se vem dedicando a estudos sobre a psicologia das multidões e tem mesmo alguns trabalhos inéditos sobre a matéria. Para melhor orientação dos seus estudos, resolvera fazer uma experiência sobre a "capacidade agressiva de uma massa religiosa à resistência das forças das leis civis, ou determinar se a força da crença é maior do que a força da lei e do respeito à vida humana".

Alguns trechos de seu livro Experiência Nº 02:



"Contemplei por algum tempo este movimento estranho de fé colorida, quando me ocorreu a idéia de fazer uma experiência, desvendar a alma dos crentes; por meio de um reagente qualquer que permitisse estudar a reação nas fisionomias, nos gestos, no passo, no olhar, sentir enfim o pulso do ambiente, palpar fisicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva, registrar o escoamento dessa emoção, provocar a revolta para ver alguma coisa inconsciente. Dei meia volta, subi rapidamente em direção da catedral, tomei um elétrico, e meia hora depois voltava munido de um boné."

"Tomei logo a resolução de passar em revista o cortejo, conservando o meu chapéu na cabeça e andando em direção oposta a que ele seguia para melhor observar o efeito do meu ato ímpio na fisionomia dos crentes. A minha altura, acima do normal, me tornava mais visível, destacando a minha arrogância, e facilitando a tarefa de chamar atenção. A princípio me olhavam com espanto — me refiro à assistência, porque aqueles que eram da procissão se portavam diferentemente, eles eram os eleitos de deus, os escolhidos, e formavam uma massa em movimento lento, contrastando em qualidade com a assistência imóvel; eram, portanto, praticamente, o único movimento de todo o imenso percurso da procissão, e esta situação de movimento naturalmente exigia o monopólio da atenção geral, e uma presença perturbadora como era a minha deveria influir diretamente na procissão em movimento e na assistência."

"Uma delas, porém, destoou claramente das outras. Era uma moça alta, um tanto cheia, tinha o nariz arcado e segurava um estandarte. Ela se parecia mais com um sargento da cavalaria que com a filha da Virgem, seu olhar francamente agressivo me escrutava. Não podia ouvir o que ela dizia em voz baixa a sua companheira, mas os seus lábios pareciam proferir injúrias do mais baixo calão. Tenho certeza de que se estivesse ao seu alcance seria unhado e mordido sem reservas."

"Abri os meus braços num gesto patriarcal e patético expliquei com doçura: "eu sou um contra mil..." a agitação imediatamente cresceu e todos pareciam discutir indecisos entre si. Repeti novamente o que queria dizer. O barulho da discussão aumentou o volume. Fiquei parado sem saber o que fazer, temendo me retirar bruscamente porque sem dúvida seria esmagado e estraçalhado. [...] A massa tinha reagido pela emotividade ancestral, e não pelo raciocínio. [...] Olhei para as caras a minha frente, todas homicidas, vindicativas, revoltadas, todas em expectativas. [...] Um rumor de desagrado percorreu a multidão, "mata... pega..." gritou alguém. [...] Estava prestes a largar o verbo quando alguém grita "lincha!"; vejo uma parte da multidão que quer se precipitar sobre mim, mas é acidentalmente impedida pela confusão reinante."

A experiência nº 03

A Experiência número 3 consistiu em um passeio pelo centro de São Paulo com uma roupa unissex, por ele concebida, pensando na elegância, comodidade e higiene do verão das grandes cidades. Ele criou este estilo de roupa por duas razões: primeiro, ele acreditava que era necessário criar uma moda unissex, como consequência do já existente nivelamento entre homens e mulheres; ambos deviam dividir o mesmo tipo de roupa. Segundo, ele acreditava que era necessário criar um tipo de roupa para executivo adequado para os trópicos. Ele estava convencido de que as roupas deles — ternos europeus de tecido de casimira inglesa ou brim — eram impróprios para o calor do verão, porque não tinham ventilação e eram portanto anti-higiênicos. Apesar da brutal diferença climática, a moda brasileira insistia em imitar o estilo dark europeu, adotando pesados casacos, chapéus de feltro, calças de lã e gravatas largas e compridas.

Assim Flávio de Carvalho criou um estilo de roupa com buracos na altura da axila que permitia a renovação do ar entre o corpo e o tecido e enquanto o movimento das pernas permitiam a renovação do ar entre a saia e as pernas. O colarinho devia ser largo e não devia obstruir a circulação do sangue. Sua existência era apenas para psicologicamente favorecer a quem sofria de complexo de inferioridade. As meias mais adequadas eram as do tipo arrastão que ele encontrou em uma loja de balé. Sua função era a de esconder as veias que certas pessoas têm. A jaqueta bem aberta tanto na cintura como no colarinho permitia a circulação vertical do ar dentro da roupa. Para a sandália, como não teve tempo de pensar em nada exclusivo, adotou um modelo comum.

A inusitada roupa de Flávio de Carvalho provocou choque e muita controvérsia em São Paulo. Desta vez não era a Igreja nem a Polícia que se sentiam agredidas por suas performances, mas os homens em geral. Ele deixou a própria imprensa perplexa com a sua proposta. Alguns acreditaram que ele era um louco, outros que era um homossexual exibicionista. Ele desfilou pelas ruas pelo menos duas vezes, apresentando modelos de blusa ligeiramente diferentes, e em uma, ele exibe um chapéu branco.




O pintor, o artista.

Retratos

Retrato do prof. Pietro Maria Bardi, 1964
óleo sobre tela
MAB - FAAP


Retrato de Burle Marx, 1952
óleo sobre tela
90 x 70 cm
Coleção Sérgio Fadel

Retrato de Mário de Andrade, 1939
óleo sobre tela
Pinacoteca Municipal / Centro Cultural São Paulo

Retrato de Murilo Mendes, 1951
óleo sobre tela
100 x 70 cm
Coleção Gilberto Chateaubriand

Série Trágica

Nesta série, Flávio de Carvalho demonstrou através do desenho imagens da agonia de sua mãe em seu leito de morte.

Série trágica, IX, 1947
carvão sobre papel
68,6 x 51 cm
Museu de Arte Contemporânea da USP


Série trágica, I, 1947
carvão sobre papel
69,9 x 51 cm
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo

Série trágica, V, 1947
carvão sobre papel
68,4 x 51,3 cm
Museu de Arte Contemporânea da USP

Série trágica, VII, 1947
carvão sobre papel
69,4 x 50,4 cm
Museu de Arte Contemporânea da USP


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